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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

JOGANDO COM O TEMPO


O presente ameaça
o futuro não chega
o passado não passa

o passado não passa
o futuro não chega
e o presente ameaça

o passado trespassa
o futuro não chega
o presente escorraça.

O tempo é trapaça?

tempo:
fogo-fátuo
na veia e na praça
floresta
onde o caçador é caça
labirinto
onde mais se perde
quanto mais se acha.

Affonso Romano de Sant'Anna
In Sísifo desce a montanha

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Pela flor amarela viajaremos


Pela flor amarela viajaremos:
afastaremos as nuvens espessas
e as florestas de espinhos.


Pela flor amarela, vamos e voltamos,
por escadas escuras, corredores estreitos,
falando a desconhecidos.


Onde está, dizei-nos, a flor amarela?
Era minha? era vossa? era do seu próprio instante,
era sua, cativa por algum caçador floral?


Pela flor amarela atravessaremos a pedra,
o vidro, o metal, as palavras.
Atravessaremos o coração, como quem se mata.


Atravessaremos um novo mar desconhecido,
correremos Áfricas e Ásias, pólo e tropico,
e jogaremos nossa vida entre as estrelas.


A flor amarela está guardada em si mesma,
seu perfume, sob mil pétalas tranqüilas,
seu pólen resguardado contra o vão descobrimento.


1962



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Sonhos (1950-1963)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

SOLIDÃO


Quedamos sempre sozinhos
Em nossas horas maiores

A dor, veneno latente,
Corrói-nos a alma em segredo.

A mais gloriosa alegria
Floresce na solidão.

Helena Kolody
In: Correnteza

A OUTRA FACE DA VIDA

Nada revela o trabalho,
Tão sorrateiro, do tempo,
Nas profundezas do ser.


Como um “iceberg” enorme,
Tudo gira, de improviso.
Muda-se o plano da vida
Pra face desconhecida.


Um ângulo de luz tão difrente
Incide nos mais claros pensamentos...
Quantas lacunas inobservadas,
Com seus abismos desconcertantes !
O que era terra firme e segura,
É gelo móvel e flutuante.

Helena Kolody
In: Correnteza

terça-feira, 12 de julho de 2011

Enquanto

Sou inconstante como o vento
Sou inconstante como a vaga
Por isso fica
Enquanto estou desvelada
Enquanto eu não for
Vento ou vaga.


Olga Savary

Auto-despedida

Há algo nas manhãs que não entendo agora
e a um grito de minhas pernas não atendo.
Ainda depois da noite, noite me espia
e sonho dúvidas enormes e imóveis
como a imobilidade das aranhas.
Tão pouco tempo- e tenho de deixar-me
e queria nunca ter de repartir-me.
Começa a raiva da saudade
que inventei vou ter de mim.



Olga Savary

Quero apenas

Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.


Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto do meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.

Olga Savary
Olga Savary(Belém, 21 de maio de 1933)

"Chove, de manso, na cidade"

Chora em meu coração
como chove lá fora.
Porque esta lassidão
me invade o coração?

Oh! ruído bom da chuva
no chão e nos telhados!
Para uma alma viúva,
oh! o canto da chuva!

E chora sem razão
meu coração amargo.
Algum desgosto? - Não!
É um pranto sem razão.

E essa é a maior dor,
não saber bem por que,
sem ódio sem amor,
eu sinto tanta dor.

Arthur Rimbaud
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (20 de outubro de 1854, Charleville - 10 de novembro de 1891, Marselha)

Spleen

Quando o cinzento céu, como pesada tampa,
Carrega sobre nós, e nossa alma atormenta,
E a sua fria cor sobre a terra se estampa,
O dia transformado em noite pardacenta;

Quando se muda a terra em úmida enxovia
D'onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Foge, roçando ao muro a sua asa sombria,
Com a cabeça a dar no teto apodrecido;

Quando a chuva, caindo a cântaros, parece
D'uma prisão enorme os sinistros varões,
E em nossa mente em febre a aranha fia e tece,
Com paciente labor, fantásticas visões,

- Ouve-se o bimbalhar dos sinos retumbantes,
Lançando para os céus um brado furibundo,
Como os doridos ais de espíritos errantes
Que a chorar e a carpir se arrastam pelo mundo;

Soturnos funerais deslizam tristemente
Em minh'alma sombria. A sucumbida Esp'rança,
Lamenta-se, chorando; e a Angústia, cruelmente,
Seu negro pavilhão sobre os meus ombros lança!


Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Palavra de homem


Um pouco de amargura não resolve.

Um pouco de amargura

se dissolve,

se nesta cidade

não conheces o outro

que está perto e pouco.



A palavra de homem em tua boca

espera a palavra e o nome

de peso e cobre.

Espera a voz do outro

que acusa a palavra pouca

e explode a armadura

dessa amargura rouca.



Falar não salva o homem.

- Estás na outra

palavra do outro

perto e solto.

Falar não abre a porta

não abre a cela

não salva o foco

de tuas chagas.

Falar só salva, salvo

se o outro

do outro lado

fale por tua boca:

- a fala pouca

que te dissolve

a arma pura

desta amargura

que não resolve.



Mário Chamie*
Mário Chamie *(Cajobi, 1 de abril de 1933 - São Paulo, 3 de julho de 2011) foi um poeta e crítico brasileiro. Era formado em Direito pela Universidade de São Paulo. Foi secretário municipal de Cultura de São Paulo e criou a Pinacoteca Municipal de São Paulo, o Museu da Cidade de São Paulo e o Centro Cultural São Paulo.

Com seu livro Lavra Lavra, de 1962, instaurou o "poema-práxis". Mário Chamie é um nome muito importante na história das vanguardas surgidas no final da década de 1950, como dissidente do concretismo e fundador da "poesia-práxis". Tem mais de 140 obras publicadas e traduzidas em 57 idiomas. Gilberto Freyre escreveu sobre Chamie: "A criatividade se apresenta tão dele e tão não somente dele que é como se palavras, ou relações entre palavras, nascessem com ele, como se fossem de todo inventadas".

Foi professor convidado a dar aulas e palestras em diversas universidades pelo mundo, como Harvard, onde deu aulas para o astro da música Jim Morrison, vocalista da banda The Doors, de quem guarda até hoje uma coleção de cartas que este lhe enviara. Chamie dava aulas na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo, e era locutor do programa 50 por 1, exibido pela Rede Record e apresentado por Álvaro Garnero.

Foi casado por muitos anos com a falecida Emilie Chamie, famosa por seus trabalhos gráficos de divulgação de peças publicitárias. Participou do Projeto da Academia Paulista de Letras (da qual foi membro) "Escritor na Escola", ministrando duas palestras sobre o ritmo da fala na poesia escrita, nos colégios EE. Prof. Narbal Fontes e EE. Dr. Octávio Mendes.

O poeta morreu em 3 de julho de 2011, no Hospital Oswaldo Cruz.